Dicionário de Cinema: plongée e contraplongée
Verbete #01 do Dicionário de Cinema da Revista Cine Cafe no Instagram.
Para celebrar a 100ª postagem e os 800 seguidores nesses 44 dias de página, lançamos nosso primeiro conteúdo serial: o Dicionário de Cinema. Todo domingo, traremos um verbete específico do cinema, explicaremos seu significado e daremos um exemplo de como esse elemento funciona narrativamente no cinema. Bora?
O primeiro verbete é o plongée. “Mergulho” em francês, plongée diz respeito ao ângulo em que a cena é filmada: de cima pra baixo, como se a câmera estivesse mergulhando em direção ao chão. Esse enquadramento é muito comum no cinema e costuma ser usado com uma personagem na frente, com a função de ilustrar sua posição de inferioridade.
Um frame famoso que exemplifica bem isso é a cena do Gato de Botas em Shrek 2 (2004), no qual o personagem se finge de um gatinho indefeso. Além do papel que sua expressão facial exerce, não haveria enquadramento melhor para essa cena do que o plongée. Tanto para ilustrar o tamanho menor do personagem, como para exprimir sua inferioridade.
Outra cena famosa é de Bastardos Inglórios (2009), aquela em que um oficial nazista é capturado pelos sádicos Tenente Aldo Raine (Brad Pitt) e pelo Sargento Donny Donowitz (Eli Roth). Ao pensar o roteiro, o Tarantino pensa a cena e qual será a melhor forma de representar o terror sofrido pelo militar alemão após ser capturado pelos sangrentos judeus americanos — que, não à toa, são encenados em contraplongée, que dispensa explicações.
Um filme recente que usa o contraplongée muito bem é Mank (2020). Em um dos clímaxes do longa em preto-e-branco da Netflix, o diretor David Fincher filma Orson Welles (Tom Burke) de baixo para cima, de modo a ilustrar a posição de autoridade que ele exerce sobre o protagonista, o Manl (Gary Oldman), num momento de explosão.
Vale ainda notar que David Fincher tem o cuidado de colocar a câmera no chão ao filmar Orson Welles. Uma opção muito comum é retratar cenas assim, de embate entre dois personagens, via câmera subjetiva — ou seja, do ponto de vista de um deles. Aqui, não. Em um filme que tem a preocupação de defender a todo custo seu protagonista, Fincher tem a preocupação de mostrar que aquela não é mera interpretação de Mank; quando coloca a câmera no chão, o filme nos conta aquela história de um ponto de vista onisciente, como se víssemos de fora, sem a interferência subjetiva de Mank, logo intuimos que Orson Welles foi um tremendo babaca com seu contratado e ponto.
Isso é uma linguagem cinematográfica — uma linguagem audiovisual. Uma simples angulação porta muita semântica. Se você não sabia disso, perceba como o Superman é (quase) sempre encenado de baixo pra cima, mesmo quando está no chão e em pé, mesmo quando feito sutilmente, numa angulação menor. A imagem e seu enquadramento têm significado, significados. Preste sempre atenção daqui em diante.
Obras citadas:
Superman: O Filme (Superman, 1978), de Richard Donner; Shrek 2 (2004), de Andrew Adamson, Kelly Asbury e Conrad Vernon; Bastardos Inglórios (Inglourious Basterds, 2009), de Quentin Tarantino; Mank (2020), de David Fincher.
Texto originalmente escrito para a página da Revista Cine Cafe no Instagram.