Cinema | John Wick 4: Baba Yaga, de Chad Stahelski

John Wick: Chapter 4 (EUA, Japão, 2022). Com Keanu Reeves, Donnie Yen, Ian McShane, Bill Skarsgård, Laurence Fishburne, Shamier Anderson, Rina Sawayama, Hiroyuki Sanada e Lance Reddick.

Rodrigo Torres
6 min readMar 28, 2023

“I will prepare and some day my chance will come”
— Abraham Lincoln

Durante algum tempo, eu falei que Chad Stahelski teve a sorte de lançar John Wick no timing perfeito. De Volta ao Jogo (John Wick, 2014) estreou no mesmo ano que Pompeia (Pompeii, 2014) chegava aos cinemas, dividia a crítica e consolidava Paul W. S. Anderson como ícone do vulgar auteurism, ou cinema vulgar.

A confirmação de um autor vulgar

Inspirados no movimento da Cahiers du cinéma que reconheceu a grandeza de Alfred Hitchcock (então considerado um artista popularesco, de menor valor), os críticos e cinéfilos do vulgar auteurism enlouqueceram com De Volta ao Jogo. Um high concept arrasador (um mercenário viúvo volta à ativa quando roubam seu carro e matam seu cachorro), desenvolvido de forma direta e impecável, com todo um universo por trás e um personagem à feição de Keanu Reeves, sua carreira e sua história de vida. Prato cheio para os adeptos do cinema vulgar, que abraçaram John Wick.

Tudo faz sentido em John Wick. No cartaz, por exemplo, o sol poente em seu rosto complementa o significado da gravata no formato de ampulheta.

Chad Stahelski precisa de poucas cenas do seu filme seguinte para provar que eu estava errado. Os primeiros minutos de John Wick: Um Novo Dia para Matar (John Wick: Chapter 2, 2017) são como o sussuro de um coach cretino: “Sorte é quando a oportunidade e a competência se encontram” (perdão pela cafonice). Para quem não se lembra, John Wick 2 começa com Bancando o Águia (Sherlock Jr., 1924) projetado num prédio sob luz neon. A clássica perseguição da obra-prima de Buster Keaton anuncia a sequência alucinante que veremos a seguir. Com coreografias melhores, cenas de ação mais intensas, muita cinefilia e uma cinematografia dotada de forma e estilo bem característicos. Coisa fina.

John Wick: Um Novo Dia para Matar é um encontro de Chad Stahelski com sua persona autoral. Como que o cinema vulgar tivesse apontado um caminho que o cineasta, em retribuição, adotou para si. Coincidência? Talvez. Mas gosto de pensar que Stahelski (um dublê experiente, mas um cineasta novato) encontrou nas premissas do vulgar auteurism a unidade de linguagem de que precisava para amadurecer como diretor de cinema e, então, articular seu imenso caldeirão de referências. O sucesso é tamanho que ele acaba de realizar uma das obras seminais da década.

O crepúsculo do Baba Yaga. Marcado pela estética barroca.

John Wick 4: Baba Yaga (John Wick: Chapter 4, 2023) é herdeiro da grandiloquência de John Wick 3: Parabellum (John Wick: Chapter 3 — Parabellum, 2019), e dele porta seu único defeito: a “barriga”. O filme é longo e, em dado momento, isso pesa. A ação incessante se torna exaustiva, o prolongamento das cenas anestesia a emoção. Mas Stahelski tem consciência de seu longa-metragem, e sacode o espectador nessas horas. Abre a quarta parede duas vezes — as duas ao final das sequências mais esgotantes. Fazendo gags para o público na porradaria da escada e revirando o ângulo do tiroteio num prédio. O diretor tem controle suficiente da franquia para subvertê-la e praticar metalinguagem sem soar mero pastiche tarantinesco. E olha que o irmão mais próximo de Baba Yaga na cinessérie é o mais referencial deles: John Wick 2.

Eu abri este texto com uma frase de Abraham Lincoln que sintetiza a saga de Chad Stahelski ao longo de John Wick. Fiz isso em reverência ao próprio Chad Stahelski, que abre John Wick 4 com uma frase de Dante Alighieri que sintetiza a saga do protagonista — e a experiência massacrante que teremos por quase 3 horas. “Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate”. A frase inscrita na porta do Inferno em A Divina Comédia (La Divina Commedia, 1304–1321) recebe os mortos e prepara o leitor para uma viagem infernal. “Deixais toda esperança, vós que entrais”. O grito zombeteiro de Bowery King (Laurence Fishburne) prenuncia o destino de John Wick e prepara o espectador para o que virá. Essa será a maior provação do personagem. A pior. Como uma descida ao inferno.

Caine. Personagem espetacular!

John Wick apanha como nunca e, no campo das referências, entre Dante e Camus, como o legítimo anti-herói neo-noir que é. O western é inspiração no início e no desfecho. O cinema oriental permeia toda a projeção, e não só pelas artes marciais — o filme vai a Tóquio, mergulha em sua cultura, bebe da fonte de Hark Tsui e transforma Donnie Yen num vilão espetacular. Imprevisível. Um paradoxo ambulante. Caricatural, mas complexo. Caine é o personagem mais carismático de toda a franquia, disparado. E apurado pelo diretor em cada detalhe. Sua introdução na ação, num plano à contraluz, com um comportamento insolente e nonsense, combina quadrinhos, videoclipe e TikTok — e é fenomenal. Um clássico instantâneo.

Esse sincretismo de linguagens é um elemento fundamental do cinema de Chad Stahelski. A estética dos videogames, que tanto me deixa vidrado em John Wick 2, volta com tudo no quarto filme. Repare como a trama é dividida em fases, com cenários bem definidos e distintos entre si, e como John Wick enfrenta vários capangas até encarar, no final, um vilão que se destaca pela força e aparência. O roteiro de Derek Kolstad, Shay Hatten e Michael Finch é como uma manta que conecta sucessivas fases de um jogo eletrônico. Além de várias influências artísticas e culturais. De forma muito coesa, orgânica e funcional. Perceba como os personagens (com seus figurinos pomposos) interagem bem com esses espaços (quase sempre grandiosos). Isso não é simples.

Tracker e seu cachorro assistem ao desfecho de John Wick 4 de camarote.

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (Everything Everywhere All At Once, 2022) é um exemplo disso. Ao meu ver, o grande vencedor do Oscar 2023 é tão divisivo e polêmico porque sua narrativa é uma grande maçaroca. Uma colcha de retalhos mal remendada, sem unidade ou fluidez. Reproduz fortes elementos de outros filmes, como Matrix (The Matrix, 1999) e Homem-Aranha no Aranhaverso (Spider-Man: Into the Spider-Verse, 2018), sem se destacar das suas referências, sem virar algo maior. Toda vez que alguém exalta a originalidade dos Daniels, um coala fofinho cai duro.

A franquia John Wick explora o cinema de todo mundo e do mundo todo. Vai da literatura medieval à arte clássica, passando pelo gótico e pelo barroco. Incorpora toda sorte de estéticas e inovações (as citadas ao longo do texto e, provavelmente, outras que não percebi). E reúne tudo isso com extrema destreza. Tudo faz sentido ali dentro. Porque antes foi sendo construído, pouco a pouco, um universo muito próprio e eclético. Então, quando John Wick 4 abusa de ser estiloso e da fotografia neon ou transforma cenas de ação em clipe musical, nunca soa como cópia barata dos filmes de Nicolas Winding Refn ou Michael Mann. São características que se encaixam num material bem fundado. São inspirações a serviço de uma obra original e que se tornam algo novo. Esse é o cinema vulgar de Chad Stahelski. Esse é o auge da mitologia de John Wick.

★★★★☆

Texto originalmente publicado no Cineplayers.

--

--

Rodrigo Torres

Críticas de cinema e TV. Pitacos eventuais sobre esportes, política e o que mais der na telha.