Cinema | Kareem Abdul-Jabbar critica Quentin Tarantino por representação de Bruce Lee em Era Uma Vez Em… Hollywood

Lenda da NBA era amigo do artista marcial, com quem contracenou no clássico Jogo da Morte. Uma das grandes preocupações do astro chinês era mudar a imagem estereotipada dos asiáticos na TV e no cinema.

Rodrigo Torres
8 min readAug 21, 2019

Kareem Abdul-Jabbar, lenda do basquete e respeitado crítico racial, cultural e político, criticou Quentin Tarantino em sua coluna no site The Hollywood Reporter. Ele fez coro aos protestos de Shannon Lee sobre a forma com que Era Uma Vez Em… Hollywood retrata seu pai, o icônico Bruce Lee. Segundo ela, o artista marcial foi injustamente retratado como “um idiota arrogante e cheio de exibicionismo”. Kareem foi além, dizendo que a abordagem caricata do cineasta nova-iorquino é “desleixada e racista”.

“Claro que Tarantino tem o direito artístico de retratar Bruce da forma que quiser. Mas fazer isso de uma forma tão desleixada e de certa forma racista é uma falha tanto como artista como ser humano”, disse Kareem, sempre ponderando suas colocações: “Assisto a cada filme de Tarantino como se fosse um evento, sabendo que sua releitura de filmes de ação dos anos 1960 e 1970 serão muito mais divertidos do que uma simples homenagem. É isso que torna as cenas de Bruce Lee tão decepcionantes, nem tanto pela base factual, mas pela falta de consciência cultural.”

Abdul-Jabbar conhecia Bruce Lee. Eles contracenaram no clássico de ação Jogo da Morte — homenageado pelo próprio Tarantino em Kill Bill. Mas Kareem e Lee eram amigos. Assim, fala com propriedade sobre o astro chinês, suas preocupações e visão de como o seu povo era representado no ocidente.

Kareem Abdul-Jabbar e Bruce Lee em Jogo da Morte. Repare a similaridade entre o traje do astro chinês eo macacão amarelo usado pela Beatrix Kiddo de Uma Thurman em Kill Bill.

“Bruce Lee foi meu amigo e professor. Isso não dá a ele um passe livre sobre como é retratado no cinema. Mas me dá algum conhecimento sobre o homem. […] Durante nossa amizade de anos, ele falou apaixonadamente sobre o quão frustado ficava com a representação estereotipada de asiáticos no cinema e na TV. Os únicos papeis eram vilões inescrupulosos ou serventes”, disse, comparando esses estereótipos com o tratamento cômico, mas também simplista e ridículo de um Bruce Lee que se gaba de suas habilidades e topa uma luta com o personagem de Brad Pitt, o dublê Cliff Booth.

“Bruce era dedicado a mudar a imagem desdenhosa de asiáticos por meio de sua atuação, escrita e promoção do Jeet Kune Do, sua interpretação das artes marciais. É isso que me incomoda em Tarantino ter escolhido retratar Bruce de forma tão unidimensional. A atitude de machão à la John Wayne de Cliff (Brad Pitt), um dublê mais velho que derrota esse chinês arrogante e atrevido, ecoa os vários estereótipos que Bruce tentava desconstruir. É claro que o galã americano branco e loiro pode bater naquele carinha asiático chique, pois essa porcaria estrangeira não se cria aqui”, disparou o maior pontuador da história da NBA.

Quentin Tarantino se defendeu das críticas de Shannon Lee dizendo que se baseou em relatos reais ao retratar Bruce Lee de tal forma caricata. Kareem Abdul-Jabbar o contrapõe lembrando situações em que Bruce Lee foi realmente desafiado: “Estive em público com Bruce várias vezes em que algum babaca aleatório chegava desafiando Bruce em alto e bom som para uma luta. Ele sempre recusava educadamente e seguia em frente. A primeira regra do clube da luta do Bruce era não lutar — a menos que não houvesse outra opção. Ele não sentia necessidade de se provar. Ele sabia quem era e que a verdadeira luta não era sobre o tatame, era nas telas, em criar oportunidades para os asiáticos serem vistos como mais que estereótipos jocosos.”

Cliff Booth e Bruce Lee se enfrentam na ficção de Era Uma Vez Em… Hollywood.

Mike Moh disse à Entertainment Weekly que ele mesmo se viu dividido ao ler o roteiro de Era Uma Vez Em… Hollywood. Mas relaxou ao aceitar que se tratava de uma ficção e da admiração de Tarantino por Bruce Lee.

“Quando li pela primeira, eu fiquei, ‘Uau!’… Eu não vou dizer o que estava no roteiro original, mas, quando li, eu fiquei muito confuso, pois ele é meu herói — na minha mente, Bruce é literalmente um deus. Ele não era uma pessoa para mim, ele era um super-herói. E eu acho que é assim que a maioria das pessoas veem Bruce. E o ponto sobre isso é, esse é um filme do Tarantino. Ele não vai fazer o que todo mundo espera que outras pessoas fariam. Você precisa esperar o inesperado. E número dois: eu sempre soube que Tarantino ama Bruce Lee; ele o venera. Então, pra ser claro, o filme foi um desafio — um melhor de três. E eu anotei o primeiro ponto primeiro”, disse Moh, em uma metáfora esportiva sobre pesar prós e contras e entender a ideia de Tarantino ao fazer a polêmica representação de seu ídolo.

Leonardo DiCaprio, Margot Robbie e Brad Pitt estrelam Era Uma Vez Em… Hollywood como três profissionais da sétima arte. O filme se situa no fim da década de 60 em Los Angeles, mostrando o cotidiano da meca do cinema norte-americano naquele período de efervescência e conflitos sociais e culturais às vésperas de um crime terrível: o assassinato de Sharon Tate pela gangue de Charles Manson.

Notícia originalmente publicada no site Cineplayers.

Leia a tradução do texto de Kareem Abdul-Jabbar para o THR na íntegra:

Kareem Abdul-Jabbar: Bruce Lee era meu amigo e o filme de Tarantino o desrespeita

Kareem Abdul-Jabbar e Bruce Lee durante as filmagens de Jogo da Morte, lançado em 1978.

O notável da NBA e colunista do Hollywood Reporter, amigo do saudoso astro das artes marciais, acredita que o cineasta foi desleixado, de certa forma racista e se esquivou de sua responsabilidade para com a verdade básica em “Era uma vez em Hollywood”.

Lembra daquela vez em que o Dr. Martin Luther King Jr. deu um soco no garçom por servir croutons encharcados em sua sopa de tomate? E aquela em que Dalai Lama ficou de saco cheio e pichou “Karma is a Beach” na limusine do embaixador tibetano? Provavelmente não, pois nunca aconteceram. Mas poderiam acontecer se um cineasta decidisse escrever essas cenas em seu filme. E, mesmo que saibamos que o filme é uma ficção, essas cenas ganharão vida na consciência cultural que compartilhamos como impressões dessas pessoas reais, assim corrompendo nossa memória sobre elas em detrimento de seus atos na vida real.

É por isso que cineastas têm uma responsabilidade ao manipular as percepções das pessoas sobre figuras históricas admiradas: manter a verdade básica sobre o conteúdo desse personagem. E a representação de Bruce Lee por Quentin Tarantino em Era Uma Vez Em… Hollywood não respeita essa norma. Claro que Tarantino tem o direito artístico de retratar Bruce da forma que ele quiser. Mas fazer isso de uma forma tão desleixada e de certa forma racista é um erro tanto como artista, quanto como ser humano.

Essa polêmica me deixou dividido. Tarantino é um dos meus cineastas favoritos porque ele é muito corajoso, contundente e imprevisível. Seus filmes contêm uma energia vertiginosa de alguém que ama filmes e quer que você os ame também. Eu assisto a cada filme do Tarantino como se fosse um evento, sabendo que sua releitura dos filmes de ação dos anos 60 e 70 será muito mais divertida do que uma simples homenagem. É isso que torna as cenas de Bruce Lee tão decepcionantes, nem tanto por sua base factual, mas por sua falta de consciência cultural.

Mike Moh como Bruce Lee em Era Uma Vez em Hollywood.

Bruce Lee foi meu amigo e professor. Isso não dá a ele um passe livre de como ele é representado no cinema. Mas me dá algum conhecimento sobre o homem. Conheci Bruce quando eu estudava na UCLA, tentando continuar meus estudos de artes marciais, que eu comecei em Nova York. Nós rapidamente desenvolvemos uma relação de amizade assim como de mestre-aluno. Ele me ensinou a disciplina e a espiritualidade das artes marciais, que foram grandiosamente responsáveis para que eu fosse capaz de jogar competitivamente na NBA por 20 anos com muito poucas lesões.

Durante nossa amizade de anos, ele falou apaixonadamente sobre o quão frustado ele ficava com a representação estereotipada de asiáticos no cinema e na TV. Os únicos papéis eram para vilões inescrupulosos e servos reverentes. Em Have Gun — Will Travel, o fiel servente chinês do Paladino é chamado pelo ofensivo nome de “Hey Boy” (Kam Tong). Ele foi substituído na quarta temporada por uma personagem feminina referida como “Hey Girl” (Lisa Lu). Homens asiáticos eram retratados como acessórios assexuados para uma cena, enquanto as mulheres eram subservientes. Foi assim que homens e mulheres afroamericanos foram representados em regra até o surgimento de Sidney Poitier e dos filmes blaxploitation. Bruce era dedicado a mudar a imagem desdenhosa de asiáticos por meio de sua atuação, escrita e promoção do Jeet Kune Do, sua interpretação das artes marciais.

Sequência de luta entre Lee e Abdul-Jabbar em Jogo da Morte, que pode ser vista aqui.

É isso que me incomoda em Tarantino ter escolhido retratar Bruce de forma tão unidimensional. A atitude de machão à la John Wayne de Cliff (Brad Pitt), um dublê mais velho que derrota esse chinês arrogante e atrevido, ecoa os vários estereótipos que Bruce tentava desfazer. É claro que o galã americano branco e loiro pode bater naquele carinha asiático chique, pois essa porcaria estrangeira não se cria aqui.

Eu poderia até aceitar a versão distorcida de Bruce se essa não fosse a única cena significativa com ele, se também tivéssemos visto um vislumbre de suas outras qualidades, de sua luta para ser levada a sério em Hollywood. Infelizmente, ele foi como o Hey Boy, apenas mais um adereço para a cena. A cena é complicada ao ser apresentada como um flashback, mas de uma forma que poderia sugerir que a memória do dublê é caricaturalmente tendenciosa a seu favor. Igualmente perturbador é a sombra mal resolvida sobre Cliff poder ter matado a sua esposa com uma arma de fogo porque ela o incomodava. Clássico Cliff. Será que Cliff é mais heróico por também não tolerar mulheres diretas?

Estive em público com Bruce várias vezes em que algum babaca aleatório chegava desafiando Bruce em alto e bom som para uma luta. Ele sempre recusava educadamente e seguia em frente. A primeira regra do clube da luta do Bruce era não lutar — a menos que não houvesse outra opção. Ele não sentia necessidade de se provar. Ele sabia quem era e que a verdadeira luta não era sobre o tatame, era nas telas, em criar oportunidades para os asiáticos serem vistos como mais que estereótipos jocosos. Infelizmente, Era Uma Vez Em Hollywood prefere as boas e velhas práticas.

--

--

Rodrigo Torres

Críticas de cinema e TV. Pitacos eventuais sobre esportes, política e o que mais der na telha.