Política | O Brasil não está revoltado com o massacre em Blumenau

A grande mídia tem projeto político, por isso não aponta o grande culpado pela ascensão da violência no Brasil: a extrema-direita.

Rodrigo Torres
7 min readApr 7, 2023

É mentira que o Brasil está revoltado com o massacre na creche em Blumenau. Mais cedo, um “especialista” atribuiu esse caso hediondo à “falta de Deus” da população. O segundo argumento foi um pouco melhor: “falta de educação”. Mas o que vem provocando essa deseducação do povo?! E por que não se dá nome aos bois?

Pesquisa divulgada pelo jornal The New York Times foi bem clara: “a maior parte da violência extremista nos Estados Unidos vem da direita política”. Assim é no Brasil também, pois nada acontece por acaso. E, nesse caso, não faltam evidências de um padrão terrível: a ascensão da extrema-direita no Brasil provocou essa ascensão da violência no país.

Como todo mundo sabe, o principal expoente da extrema-direita no Brasil, Jair Bolsonaro, venceu as eleições de 2018 com o apoio do estrategista de campanha do principal expoente da extrema-direita nos EUA, Donald Trump. Steve Bannon ajudou Bolsonaro, seus filhos e assessores a montar a campanha de ódio e fake news que trabalham 24 horas por dia inflamando uma parte bem específica da população: os excluídos.

A imprensa estadunidense verbaliza: a extrema-direita estimula atentados nos Estados Unidos. (Gabriela Bhaskar/The New York Times)

É por isso que Bolsonaro pode falar o que quer, proferir a maior atrocidade possível, que seguirá tendo o apoio de parte significativa da população. Não há espaço para reflexão crítica, discernimento moral ou humanidade quando o personagem em questão legitima, justamente, os instintos de uma pessoa radicalizada. Após anos de progressismo e empoderamento de mulheres, negros, pobres e outras minorias, o político que se comportou orgulhosamente como um ser misógino, racista, classista e violento de toda forma virou “mito”.

O que viria nos anos a seguir vitimou um amigo querido bem na noite em que Jair Bolsonaro foi eleito presidente. Eleitor de Fernando Haddad, Felipe tomava uma cerveja com os amigos num reduto da esquerda carioca, a Praça São Salvador, quando foi agredido por um bolsonarista. Uma garrafada! Na cara! Do nada! Aquilo foi um prenúncio.

Em 2018, Jair Bolsonaro foi o único dos 13 pré-candidatos à presidência que não repudiou o assassinato a tiros da vereadora Marielle Franco. Em 2022, um estudo da UniRio mostrou que a violência política cresceu 335% no Brasil aos três anos de seu péssimo governo. Voltando ao massacre em Blumenau, o Instituto de Estudos Avançados da Unicamp aponta que 12 escolas brasileiras sofreram ataques nos últimos 15 meses. Como todos sabemos, esse é um fenômeno recente no Brasil. Até pouco tempo atrás, você há de lembrar, toda notícia de atentado em escolas vinha acompanhada de uma generalização do povo estadunidense e de uma exaltação da cordialidade brasileira. Isso acabou!

A morte de Marielle prenunciou a violência política da era Bolsonaro. (Reprodução)

Coordenador do Observatório da Extrema-Direita, o cientista político Guilherme Casarões estuda esse fenômeno no Brasil com profundidade, e explica. “A extrema-direita brasileira é um apanhado de ideias da alt-right americana, do Steve Bannon, do evangelismo americano, dos pastores pentecostais, dos libertários americanos…”, lista o professor da FGV.

Basicamente, o que Bolsonaro fez foi reunir armamentistas, libertários, a alt-right americana e evangélicos para formar um amálgama que não é brasileiro.

Casarões faz essa constatação em tom de lamento. Segundo o estudioso, as teses desses grupos estrangeiros são absolutamente desconectadas da realidade brasileira. Por consequência, não produzem nada de bom para o país. No entanto, essas doutrinas têm forte penetração em nosso povo. “A gente é induzido, como sociedade e como intelectuais, a importar ideias que vêm de fora achando que elas são intrinsecamente melhores do que qualquer ideia que vem de dentro”, ele diz, lembrando que essa triste tendência foi constatada lá atrás pelo escritor Nelson Rodrigues, quando cunhou o termo Complexo de Vira-Lata. O acriticismo brasileiro provoca uma subserviência nociva ao próprio brasileiro.

Meme combina Pepe, The Frog (meme que simboliza a alt-right) e Donald Trump — político de extrema-direita que nunca fez nada pelo Brasil, mas sempre foi apoiado pela seita bolsonarista.

“E o que que isso nos lega? No caso do liberalismo — Roberto Schwarz, que foi um grande intelectual, falava de ideias fora do lugar. É isso: o Brasil importa as ideias e não traduz direito. Ele pega chapada aquela doutrina liberal e tenta enfiar no Brasil. O conservadorismo americano, religioso… As pessoas acham que, por ser um produto norte-americano ou europeu, é melhor do que qualquer coisa que se produz aqui dentro.”

“As consequências disso a gente começa a ver. Por exemplo: o nosso movimento nacionalista cristão (que tem um fundo católico, mas é sobretudo evangélico) é 100% importado do nacionalismo cristão norte-americano. O discurso que o pastor faz no púlpito, as teorias conspiratórias envolvendo LGBT, questões raciais etc., todas elas são copiadas dos Estados Unidos. E isso é um baita de um problema. Porque isso, inclusive, desloca as prioridades da própria comunidade evangélica aqui no Brasil. Os caras estão simplesmente repetindo uma verdade (ou uma percepção da verdade) que não é a nossa. E isso se torna um problema real para nós que leva ao nacionalismo do Bolsonaro.”

Portanto, retomando o “especialista” das primeiras linhas, é no mínimo descuidado relacionar esse massacre a uma suposta “falta de Deus” do criminoso. Não porque o assassino siga os valores morais cristãos legítimos que eu mesmo aprendi na infância. Mas porque esses valores foram distorcidos e manipulados em prol de uma agenda política perversa no Brasil.

Bolsonaro e os evangélicos na Marcha para Jesus. Sem palavras.

Em português claro: Jair Bolsonaro usa Deus para legitimar seus preconceitos. Jair Bolsonaro usa Deus para legitimar a violência que sempre pregou. Tudo que Jair Bolsonaro não representa são os valores cristãos. Mas, paradoxalmente, ele se tornou o político preferido das igrejas evangélicas brasileiras. Justamente porque ele é um radical. E porque, como o professor Casarões ensina, essa agenda conservadora vem sendo muito bem trabalhada nas plataformas digitais com o intuito de radicalizar nossa massa evangélica.

A sociedade brasileira precisa se purificar desse tema, haja vista o espaço que a religião vem ocupando em nosso estado laico. Mas há outro problema na análise desse “especialista”: o assassino de Blumenau segue o padrão de comportamento de um sancto.

O Brasil conheceu os termos sancto, sanctum e sanctvm após o Massacre de Suzano. Na ocasião, dois rapazes também praticaram um atentado numa escola. O plano para o crime foi todo organizado em fóruns online conhecidos como chans. Essas plataformas virtuais, com participação maciça de gamers, têm um perfil bem definido: homens, jovens e brancos. E os chans são fortemente influenciados por memes e gírias da alt-right americana, e pelos seus vícios — como o culto à violência e à supremacia branca. As mulheres são o principal alvo desse público, haja vista que boa parte deles são incels (corruptela de “involuntary celibacy”, que em português vulgar significa “cabaços”). Nesses fóruns, esses moleques são estimulados ao ódio. Quando um deles enfim explode e pratica um atentado, ganha o status de sancto. Do latim “santo”.

Típico meme que roda nos chans —humor marcado por violência e misoginia.

Como o termo denuncia (e por incrível que pareça), os terroristas de escolas no Brasil se respaldam na religião cristã. Os chans brasileiros praticam o mesmo desvirtuamento que a extrema-direita dos Estados Unidos. Por isso, não é coincidência que o assassino de Blumenau seja um seguidor fanático de Jair Bolsonaro. Ele se inspira em seu comportamento machista, sua persona racista, seu conservadorismo pautado na religião e seu culto às armas. Nesse sentido, vale destacar: que bom que o criminoso não portava uma arma de fogo. Sua intenção era matar 30 crianças.

Ainda assim, o exército de anons e robôs das redes bolsonaristas se anteciparam em dizer, nos portais de notícias e redes sociais, que nada teria acontecido se houvesse armas na creche. É insano. E se torna triste quando, na contramão, vemos a imprensa se calar sobre a verdadeira causa desse fenômeno.

Todo mundo sabe: a mídia tradicional brasileira tem agenda política, e é abertamente neoliberal. E age, de forma reiterada, como se antagonizar Bolsonaro significasse santificar Lula. Como se criminalizar a extrema-direita fosse um apoio à esquerda. Não é. O jornalismo é um serviço à sociedade. E não vem cumprindo o seu papel, que é denunciar o movimento que estimula massacres em Suzano, Blumenau e outras cidades que, infelizmente, tendem a ser vítimas no futuro.

Autor do massacre em Blumenau é fã do Bolsonaro. Já se perguntou por quê? (Reprodução/Pragmatismo Político)

Revolta é luta. Não se combate uma série de atentados contra professoras de escola e crianças numa creche com notas de repúdio. A única forma de se revoltar de fato com uma violência dessa é nominando os responsáveis por essa violência e combatendo cada um deles. A quem interessa preservar as máquinas que inflamam os chans e incels? A quem interessa essa indústria de ódio que ataca o Brasil?

Desde 2013, o Brasil vive uma guerra híbrida terrível. A resposta a uma década de progressismo social e progresso econômico foi uma reação conservadora e violenta que dividiu a população e adoeceu o país. Quem melhor surfou essa onda de polarização foi Jair Bolsonaro, inflamando a população com seus discursos de ódio contra minorias. Abertamente ou com mensagens cifradas — os ditos dog whistles. Enquanto os grupos neonazistas cresciam 270%, o presidente fazia live bebendo leite, símbolo da supremacia branca. Berço do maior partido nazista do mundo fora da Alemanha, Santa Catarina foi (re)ocupada por suásticas e Hammerskins. Não houve repressão, houve estímulo. Resultado: na última eleição, o estado votou em peso nos candidatos do Partido Liberal e em sua ideologia fascista. Bolsonaro teve 75% dos votos em Blumenau. É triste, mas não é mera coincidência. Nada é por acaso.

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Rodrigo Torres

Críticas de cinema e TV. Pitacos eventuais sobre esportes, política e o que mais der na telha.