Séries | Tudo ou Nada: Seleção Brasileira, de Daniel Ramirez

All or Nothing: Brazil National Football Team (Brasil, 2020). Com Tite, Neymar, Daniel Alves e Gabriel Jesus.

Rodrigo Torres
6 min readFeb 3, 2020

A Amazon fez um investimento agressivo para a primeira produção original brasileira do Prime Video. Desde a semana passada, todos os principais canais esportivos do país anunciam em peso o novo lançamento da plataforma: Tudo ou Nada: Seleção Brasileira. A simples premissa da série documental, lançar um olhar sobre os bastidores da “galinha dos ovos de ouro” da historicamente fechada CBF (Confederação Brasileira de Futebol), é um feito e tanto, quase inédito, que dá nova prova da influência e do poderio financeiro da gigante de tecnologia concorrente da Netflix no mundo. Para esse projeto ambicioso, um resultado satisfatório, por mais que o documentário não deixe de ser uma espécie de versão oficial da CBF — como ela quer que a seleção brasileira seja vista pelo público.

Mais trabalho, menos talento — os bastidores de uma seleção estéril

O diretor e showrunner Daniel Ramirez é sagaz. Se não livre, como ele faz questão de evidenciar em uma cena em que pedem para ele parar de filmar, seu acesso aos bastidores da seleção brasileira na Copa América 2019 é suficiente e explorado com inteligência. Para muito além de mostrar os momentos de descontração entre os atletas nos gramados, acomodações e salas de jogos da Granja Comary, sua lente passeia por todos os departamentos do centro de treinamento a fim de destrinchar o processo de preparação de uma seleção para um torneio de futebol, em suas minúcias e agruras. Entre o furor da convocação e os treinamentos para entrosar o time, a câmera retrata os jogadores em diferentes condições físicas, a rotina de trabalho para fortalecimento muscular ou recuperação de lesão, a pressão psicológica sobre eles, o medo do “corte”… Enfim, detalhes que enriquecem nossa visão sobre aquele cotidiano e a narrativa, com diferentes humores e alguma dose de drama.

A dor de Thiago Silva para se recuperar a tempo da disputa da Copa América 2019.

Essa triagem dos atletas pela equipe médica é algo constante na série, interessante, e irá sempre desaguar no treinador Tite e no então coordenador Edu Gaspar, assim mostrando como os diferentes departamentos interagem no dia a dia e são importantes nas decisões da comissão técnica. Tudo ou Nada corrobora o que Tite diz sobre seu trabalho à frente da seleção: em termos de campo e bola, a equipe sob seu comando trabalha sem grandes interferências do presidente da CBF, Rogério Caboclo, a quem o treinador se reporta apenas para comunicar as decisões técnicas. O cartola é como uma Rainha da Inglaterra, que só aparece em ocasiões pontuais, e pouco é mostrado no documentário — como é bom que seja. O discurso otimista, o tom de voz monocórdio, a expressão cordial e o sorriso insistente de Caboclo não transmitem a menor credibilidade, e reforçam a desconfiança geral que pesa contra ele. A imprensa enxerga Rogério Caboclo como um herdeiro do legado de Ricardo Teixeira e Marco Polo Del Nero, banidos do futebol pela FIFA por envolvimento em esquemas de corrupção.

A decisão da CBF de levar a série mundial Tudo ou Nada para dentro de seu principal ativo é, invariavelmente, fruto dessas polêmicas recentes que macularam a reputação da confederação; ou seja, o documentário é encarado como uma oportunidade de aliviar a tensão no coração da entidade por meio da valorização da imagem da seleção brasileira. O que me agrada no trabalho de Daniel Ramirez é o fato de ele atender a essa demanda (tudo ali foi filmado com a permissão da CBF) sem se furtar de mostrar verdades inconvenientes. As cenas em que Mateus Bachi, filho de Tite, orienta os melhores jogadores da seleção pentacampeã mundial são valiosas como uma joia pra mim, e de cair o queixo. Também é bacana ver a crise que atingiu a seleção durante a preparação da Copa América. Trazida por Neymar Jr., é claro.

Neymar Jr.

Falas e gestos revelam a preocupação de Tite, Edu Gaspar e do assessor de imprensa Vinícius Rodrigues antes da chegada de Neymar — que vivia um conflito com seu clube, o Paris Saint-Germain, e perdera a braçadeira de capitão após um mau desempenho na Copa do Mundo de 2018. A narração em off reúne opiniões da imprensa e da torcida que destacam a desconfiança com que o jogador é encarado por todos. Mesmo assim, ele não se importa de ser o único da equipe a desembarcar na Granja Comary com pompa de pop star em um helicóptero luxuoso, personalizado com o seu nome, recém-comprado pela bagatela de R$ 50 milhões.

Essa sanha do “Menino Neymar” pelos holofotes é reforçada pela edição de Tudo ou Nada, que mostra sua chegada ao centro de treinamento como a de alguém que se destaca do grupo enquanto o restante do elenco é retratado coletivamente e trabalhando duro. Também é curioso perceber que seu compilado de cenas dentro de campo só reúna jogadas individuais sem objetividade, enquanto seus companheiros de ataque, como Roberto Firmino, brigam em campo e jogam pro time.

Em outro momento da história, um documentário sobre a seleção brasileira seria focado no talento inato de seus jogadores. O que vemos em Tudo ou Nada é que o título da Copa América 2019 é conquistado graças a outras características nobres (estimuladas pela figura motivadora de Tite, um coach típico), como foco, dedicação, resiliência e muita união e colaboração entre os atletas. É o que vemos na cena em que o capitão Daniel Alves puxa uma oração para Neymar, que enfrenta um momento difícil após ser acusado (injustamente) de estupro e sofrer lesão num amistoso de preparação. O único personagem em que não se vê essas qualidades é justamente Neymar — apresentado como um cara legal, divertido, querido por todo o grupo, mas um atleta disperso, que está com a cabeça em outro lugar e gosta de aparecer mais que os outros. A montagem da série aponta de modo sutil que o craque deve mudar de postura para se adaptar à filosofia do grupo; o que faria um bem a ele próprio e à “seleção canarinho”.

Roberto Firmino (ao fundo), Gabriel Jesus e Everton “Cebolinha”: menos talentosos que Neymar, mas muito mais dedicados.

Tudo ou Nada: Seleção Brasileira integra uma série internacional de documentários que já contou a história de outros times de futebol, como o Manchester City, e esportes, como rugby (sobre os All Blacks) e futebol americano (Arizona Cardinals, Carolina Panthers). Isso significa que o que se perde em autoria (a linguagem é padrão, seu tom é um tanto publicitário), se ganha em maturidade de formato e profissionais, equipamentos, produção e coleta de material de primeira qualidade. Assim sendo um produto genérico, quase estéril em comparação com o clássico maior do gênero (referenciado nas locuções de rádio e na mistura de samba e bossa nova na trilha sonora): o Canal 100, cujo som chiado e imagens granuladas em preto & branco transpiravam vida e futebol. Porém, o trabalho de Daniel Ramirez e cia. é eficiente em registrar o estágio da seleção brasileira, em si e no que (não) cativa, em seu recorte contemporâneo.

O profissionalismo venceu, como mostram as impecáveis instalações da Granja Comary, a riqueza da CBF e o comportamento dos atletas que melhor desempenham com a “amarelinha”. A magia se perdeu, constatamos perante o ceticismo da torcida, as críticas da imprensa, a dificuldade de se vencer uma Copa América em casa e a concentração de talento em uma só figura que pouco entra em campo e muito desaponta.

6,5/10,0

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Rodrigo Torres

Crítico de cinema, membro da Abraccine. Letrólogo e jornalista formado em Comunicação e UX. Amo artes, esportes, geopolítica e todo tipo de papo de bar.